OM (Praṇava): a sílaba-fonte na tradição hindu
- Jeff Flausino
- 25 de set.
- 5 min de leitura

1) O que é o praṇava “OM”
Na tradição védico-upaniṣádica e no Yoga, OM é o som-síntese, a “semente” (bīja) e o nome-som que remete ao Absoluto (Brahman) e ao Ātman (Alma). É entoado no início e no fim de recitações, ritos e meditações, e serve como emblema sonoro do sagrado. Os Upaniṣads o tratam como udgītha (o canto condutor do Sāma-Veda) e como akṣara (“o Imperecível / a letra-símbolo”).
Nomes e pronúncia
Praṇava (प्रणव): “o som primeiro”.
Omkāra (ओंकार): “o formador de OM”.
Udgītha (उद्गीथ): “canto/entoação” — no Chāndogya.
IAST: oṃ ou ōṁ; em uso litúrgico, preserva-se a articulação A-U-M.
Nota fonética (útil em português): em sânscrito clássico, “OM” é monossílabo longo (“ô”), com nasalização final (ôṃ). No canto, quando traduzido do devanágari (alfabeto sânscrito) entende-se ou estende-se como A-U-M, que também tem valor simbólico tradicional. Contudo, a pronúncia correta mais usual é sempre OM.
2) Fundamentos nos Upaniṣads
Chāndogya Upaniṣad
O texto abre instruindo à meditação sobre OM como udgītha: “om ity etad akṣaram udgītham upāsīta” — “medite-se sobre a sílaba OM, chamada udgītha”. Essa passagem ancora o uso de OM como quintessência da recitação védica e como objeto de contemplação.
Muṇḍaka Upaniṣad (2.2.3–4)
Propõe a célebre metáfora do arco: a Upaniṣad é o arco, OM é o arco em sentido estrito, a alma (ātman) é a flecha e Brahman é o alvo; pela meditação, a flecha se faz una com o alvo. É uma pedagogia do japa meditativo de OM.
Praśna Upaniṣad (cap. 5)
Explica os três mātrās (A-U-M) e seus frutos contemplativos, ensinando a integrar as três em um único Brahman. Recomenda inclusive repousar a mente no silêncio entre as entoações, o que eleva a prática acima de mera recitação.
Māṇḍūkya Upaniṣad
É o tratado clássico sobre OM. Correlaciona A-U-M aos três estados da consciência e ao “quarto” (turīya):
A → jāgrat (vigília);
U → svapna (sonho);
M → suṣupti (sono profundo);
turīya → o absoluto silencioso “além das três”, pura consciência.
3) Patañjali: OM no Yoga clássico (Yoga Sūtra I.27–29)
Patañjali afirma:
I.27 – tasya vācakaḥ praṇavaḥ: o praṇava é a “designação vocal” do Īśvara (o Princípio Supremo).
I.28 – tajjapaḥ tad-artha-bhāvanam: praticar o japa de OM contemplando seu sentido.
I.29 – Disso procede a interiorização da consciência e a remoção dos obstáculos.
Com isso, o Yoga clássico transforma OM em método regular de recolhimento e purificação (antarāya-nivṛtti).
4) Sāṅkhya: por que “som” importa?
Embora a escola Sāṅkhya não canonize um mantra específico, sua cosmologia ajuda a entender por que OM opera:
Da Prakṛti emergem os tattvas; do ahaṃkāra tamásico procedem os tanmātras, começando por śabda-tanmātra (a “potencialidade do som”), que dá origem ao ākāśa (espaço). Som é, portanto, a primeira qualidade do elemento mais sutil, sustentáculo de todas as vibrações.
Nessa lente, o praṇava é praticado como ordenação da mente sobre o princípio do som — alinhando psique e respiração a um ritmo ontológico que perpassa a manifestação.
5) A anatomia simbólica do ॐ
A grafia tradicional (ligadura devanāgarī ॐ) é interpretada, na exegese simbólica, como:
Três curvas: vigília, sonho, sono profundo;
Semicírculo (às vezes lido como “māyā”/limiar): separa os três estados do “além”;
Ponto (bindu): turīya, a presença silenciosa/absoluta.
Essa leitura visual espelha a Māṇḍūkya: o traço mostra aquilo que o texto ensina.
Observação: a filologia moderna nota que, em sânscrito clássico, “OM” é um monossílabo (ōm) com nasalização; porém, o valor triádico A-U-M permanece teológico e contemplativo.
6) OM na prática: do rito à meditação
Japa: repetição atenta (mental, sussurrada ou vocal) associada a significado — não apenas som, mas sentido contemplado (YS I.28).
Prāṇāyāma com OM: alonga a expiração e pacifica os vṛttis (flutuações mentais).
Silêncio entre as entoações: a Praśna recomenda repouso mental no intervalo, aprendendo a reconhecer o “som sem som” que sustenta a sequência.
Udgītha (recitação védica): OM abrindo e selando recitações — não como ornamento, mas como chave de atenção.
7) Continuidade com o Śrī Yantra
No artigo anterior, vimos o bindu do Śrī Yantra como centro e bem-aventurança (ānanda). OM opera como via sonora a esse mesmo centro:
O bindu em OM corresponde ao turīya;
A crescente/semicírculo lembra o limiar que separa o absoluto das modalidades da mente;
O japa de OM pode ser integrado ao pūjā de Navāvaraṇa (Śrī Vidyā), como praṇava-saṅyoga que alinha gesto, sopro e sentido.
8) Leituras triádicas clássicas de A-U-M (amostras)
As tradições interpretam A-U-M de múltiplas maneiras (não excludentes):
Estados da consciência (Māṇḍūkya): A/U/M + turīya;
Trindade de funções cósmicas: criação, manutenção, dissolução (interpretação difundida em manuais e comentários);
Caminho soteriológico: arco-flecha-alvo (Muṇḍaka), enfatizando método e assimilação.
9) Síntese prática para o praticante contemporâneo
Comece pelo sentido, não pelo volume: o valor de OM está no significado contemplado durante o japa (YS I.28).
Respire o mantra: sincronize inspiração (A-U) e expiração (M), e repouse no silêncio entre repetições (Praśna 5).
Integre com o Yantra: visualize o bindu (centro) ao concluir cada OM — som recolhe, visão estabiliza.
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Nos próximos artigos, darei continuidade à série sobre a simbologia hindu e suas conexões profundas com o Yoga.
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Referências (seleção comentada)
Chāndogya Upaniṣad 1.1.1 — OM como udgītha: edição com sânscrito e tradução. (wisdomlib.org)
Muṇḍaka Upaniṣad 2.2.3–4 — metáfora do arco/flecha/alvo aplicada a OM. (VivekaVani)
Praśna Upaniṣad 5 — três mātrās, integração e silêncio entre cânticos. (wisdomlib.org)
Māṇḍūkya Upaniṣad — quatro estados e a correlação A-U-M + turīya. (Shlokam)
Yoga Sūtras I.27–29 — praṇava como designação de Īśvara, japa e seus efeitos. (wisdomlib.org)
Sāṅkhya (Sāṅkhyakārikā e doxografia) — gênese do śabda-tanmātra e do ākāśa (som como qualidade primordial do espaço). (Wikipedia)
Simbolismo gráfico do “ॐ” — três curvas, semicírculo e ponto (paralelo à Māṇḍūkya). (exoticindiaart.com)
Panorama histórico e filológico de OM (entradas de referência). (Wikipedia)
FLAUSINO, Jefferson. Yoga sem mistérios. Curitiba: Appris, 2020.
Parabéns por ir sempre tão fundo nos seus textos nos trazendo referências da tradição